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A Flor Boiando Além da Escuridão — Além da Memória

 

A criação de A Flor Boiando Além da Escuridão, em 2006-2007, marca uma inflexão em nossa história, pequena e intensa narrativa de criação no teatro e na dança. Depois de rever as origens expressionistas, tendo em R. Laban o primeiro orientador na ciência da dança, encontrei-me com a necessidade de uma volta ao impulso que rege a intuição, redescobrindo mais uma vez a ingenuidade do gesto simples. Pensava então, quem sabe agora tendo ido aos esconsos da dança, possa esquecer voluntariamente quem é ela. Não mais os sentimentos e ideais à procura de um corpo perdido, mas aquele que assume como seu o desequilíbrio e a fragilidade.

 

O momento não permite a banalização da imagem do corpo educado que maneja o desejo. A negação nos propõe um outro caminho. Os sinos tocam a hora das memórias da infância, da mulher sobrevivente da ditadura militar, de quem chorou seus mortos e desaparecidos.

 

Recusando as imagens perfeitas e pré-concebidas dos estilos de dança, e dando voz e corpo à minha memória da dança, tive um encontro marcado com Kazuo Ohno no longínquo ano de 1968. Foi o momento em que tudo recomeçaria, como gostaria de supor, o retorno à dança, ao teatro que já havia reencontrado, a um exílio maior que aquele da pátria: o de si mesmo. 

 

Em cena, La Argentina vivida por Kazuo. Mas também Tia Olímpia, a louca de Ouro Preto que defendia na minha infância, das pedras e infâmias, e ela ia batendo um longo bastão nas pedras do calçamento colonial ao meu lado, sorrindo...

 

Era o reencontro com a doce e desequilibrada razão das mulheres, aquela que torna possível fixar em uma foto o sorriso para sempre. Olho em volta de mim e lá está ela, a bailarina que sorri. Era hora de transcender. Escrevo essa coreodramaturgia, uma escritura de dança autônoma, a partir da pesquisa acadêmica, como um poema para Kazuo nos seus cem anos de dança. Peço a Yonashiro que o encarne, que o traga de volta, mas que não se esqueça de Hijikata, que abrace Mishima por mim, e sirva doces a Genet, e, por fim, brindemos La Argentina.

 

Lemos juntas: “O ser humano carrega a sua própria morte (internamente como a fruta guarda a semente), a criança carrega uma morte pequena, o adulto, grande, as mulheres em seu seio, os homens conferindo a cada um integridade e confiança” (Rilke).

 

Foi preciso buscar no mais esconso da perversidade Masculina-Feminina a compreensão da generosidade de Kazuo ao criar a sua Argentina. Como encontrá-la sem encontrar a Divine de Genet ou Yuichi de Mishima?

 

Kazuo desata em nós as mulheres de pés e mãos domados para agradar ao senhor com gestos milimetrados e respiração suspensa pelo medo. É a liberdade da dança que nasce do esmagamento, além do estilo e da escuridão.

 

Respeitosamente desejamos ao Mestre a perenidade da luz.

 

 

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